Não gosto do Acordo Ortográfico e recuso-me a
escrever segundo os seus ditames, mas, ao contrário de muitos, não acho que o
acordo venha destruir a língua portuguesa ou sequer a falada em Portugal.
Ao Acordo ortográfico acho-o apenas triste, vendido, pindérico,
causa-me principalmente vergonha, mas no linguajar do dia-a-dia perfilam-se
ameaças bem mais graves, essas sem acordo, sem nexo, sem vergonha, uma catadupa
de neologismos que se ouvem e empregam a torto e a direito, que até parecem
português mas que são simplesmente ignorância vestida de modernidade de subúrbio,
a mais terrível das culturas, aquela feita a partir das telenovelas, das casas
de segredos e dos Paulos Coelhos deste mundo.
Quando Mia Couto, na sua imensa genialidade, cria palavras lindas como “abensonhados”, nós sabemos que não se
trata de uma nova palavra do Português, mas tão-só mais uma abensonhada maravilha da magia de Couto
com as palavras e só a empregaremos em citação, como eu estou a fazer agora.
As outras são bem mais sinistras e entram por todas as vias, à
descarada, fazendo-nos vivenciar, sem o sabermos, esta investida constante do
português troglodita.
Tenha-se o leitor apercebido ou não da aparição de um desses monstros
no parágrafo anterior (de que, desde já me penitencio), é assim que
governantes, professores, dirigentes, jornalistas, vivenciam a aplaudida
chegada do tenebroso “vivenciar”, algo que ninguém sabe em que difere de viver,
mas que se vai achando que é mais fino, mais “in”, e como é gente sempre mais preocupada com os seus preciosos
segundos de fama televisiva, e todos os segundos desta vida são para
experienciar em pleno, que também não se sabe em que difere de experimentar;
explicava-me alguém há dias, que experienciar é “mais íntimo, intenso e místico”
e que experimentar “tem mais a ver com experiências de laboratório…”(sic).
Tenha-se mas é juízo!
Este linguajar não consta dos dicionários de Português e suponho
oriundo dos textos telenovelísticos ou de revistas-do-coração, transposto para
a língua por suaves criaturas em processo de descoberta do seu Eu Espiritual
pela mão de um qualquer guru e que tendo tido pouco tempo para essas questões
menores e complicadas da língua, deduzem que se trabalham na recepção, então não
recebem, recepcionam; se está na área de gerência, então não gere, gerencia; se
lhe pedem para fazer uma intervenção, não intervém, intervenciona; enfim, se
queremos estar na crista da onda in,
então nada de perceber, como dizem os parolos e toca a percepcionar!
Claro que não me admirarei se algum dos meus leitores me vier dizer que
o Priberan ou outro dicionário de vanguarda já incluem as novéis asneiras; há
dicionaristas que vivem em estado de alerta para registarem qualquer ai que um
falante solte numa entoação algo diferente, numa espécie de jogo Guinness de quem consegue mais entradas
e perdendo o contacto com a sua função reguladora e educativa, ou não tivesse
sido o afamado Priberam quem registou para o léxico essa enormidade da palavra “mídia”,
ou seja, uma palavra latina (media) , lida pelos americanos “à americana” e
copiada “de ouvido” para a escrita pelos brasileiros, hoje muito usada por
muito professor-doutor, que nos tempos que correm também parecem multiplicar-se
como dantes os bacharéis.