terça-feira, 7 de julho de 2009

As Mortes do Nosso Contentamento!

"À Morte ninguém escapa,
nem o rei,
nem o cura,
nem o Papa!"
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Era com palavras destas que se construía a imagem reconfortante de uma morte igualitária e democrática, a suprema justiça vingadora e final que assim supria o desconfortável facto de, em vida, 1% da população mundial (incluindo nesse 1% eu e o leitor!) deterem o mesmo que 57% dos outros "irmãos", os mais desafortunados, outro eufemismo com que se alivia a consciência para a abjecta sorte da enorme maioria dos habitantes deste barco planetário em que estamos todos embarcados.
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E, no entanto, que falsidade!
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Foi precisamente a morte que veio, nestes últimos dias, definir claramente essa importante questão do Who's who, do quem é quem nesta vida e, pois claro, nesta morte, que mortes, como os chapéus, há muitas!
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A morte de um cidadão de 1ª cum laude - Michael Jackson
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A morte de alguém assim é uma festa planetária e transforma-se de imediato num chorudo negócio de milhões, ou não fossem os indigentes deste mundo, felizmente propensos a gastar os últimos tostões num qualquer merchandising alusivo à "estrela" ou rei de qualquer coisa, neste caso, dizem, da pop.
Entrevistas, tributos, programas de tv, reedições, homenagens, convites sorteados e disputados para o enterro, transmissão em directo e global! Ah! que grande homem!
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Quem não conseguiu lugar, não desespere que a festa continua por mais uns dias, pelo menos até morrer outro "rei" qualquer e certamente ainda vai aparecer na e-bay alguém que teve o discernimento de guardar em devido tempo uma fraldinha do rei-bebé, repleta de merdinha amarela, como é próprio de quem ainda só bebia leite....
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A morte de cidadãos de 1ª - O Airbus A330 da Air France
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A 1 de Junho, um vôo atribulado da Air France acabou no fundo do Atlântico com os seus 228 passageiros.
Por qualquer motivo obscuro, ou até nem tanto, este acidente aéreo em tudo igual a todos os acidentes aéreos, mobilizou à força a atenção pública durante cerca de uma semana em exclusivo, a estação de tv SIC chegou mesmo a preencher totalmente o seu Jornal de horário nobre no dia seguinte ao acidente, sem incluir qualquer outra notícia! E note-se que bem pouco se sabia sobre o acidente.
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Foi um "fartar vilanagem"!
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Afinal estavam ali todos os ingredientes para alimentar o público sedento de emoções rápidas e descartáveis: uma companhia aérea europeia e de prestígio, quase todos brancos e bonitos, um casal em lua-de-mel, um reizinho de pacotilha ainda primo do nosso glorioso congénere e também habitante das revistas cor-de-rosa, condolências entre chefes de estado, luto oficial, os habituais comandantes da TAP a dizerem umas coisas de "perito" que o "comandante" seguinte logo desdiz com o mesmo ar compenetrado e solidário, a correspondente Ivane Flora lá do Brasil a dizer mil vezes o mesmo nada choramingas, finalmente lá conseguem que o nosso rei venha dizer que afinal conhecia o primo transatlântico, homem de valor e tal, umas famílias destroçadas pela morte dos familiares e pela devassa impiedosa dos media em busca das tão apetecidas lágrimas...
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Que boas e baratas estas mortes de 1ª que fazem com que não se repare em mais nada!
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A morte de cidadãos de 2ª - O Airbus A330 da Yemenie Airlines
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A 29 de Junho, um vôo entre Marselha e Moroni, nas Comores (alguém sabe onde é isto?), acabou no fundo do Índico com 154 passageiros a bordo.
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Não havia qualquer pretendente a uma corôa a bordo nem casal em lua-de-mel.
A companhia aérea era do Yémen (alguém sabe onde é isso?) e os passageiros eram das Comores e franceses mas na realidade emigrantes, pretos e pobres, uma chatice.
Lá se deu a notícia porque o avião era igual ao glorioso de 1 mês antes e rapidamente se falou mais desse do que do avião dos pretos e pobres.
Valha-nos isso e uma miraculada pretinha sobrevivente de 14 anos a provar que Deus é grande... a menina no hospital, o pai emocionado, a mãe morta mas a menina ainda não sabe, Ah o milagre da vida desta vez, a dar notícias para preencher aqueles terríveis finais de telejornal que é preciso estender para que acabem ao mesmo tempo que o da estação concorrente.
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A morte de cidadãos de 3ª
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Nunca ouvi dizer que essa malta de 3ª (e 4ª, e 5ª) morresse!
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No outro dia falaram de 16 milhões só este ano, qualquer coisa de uma criança a cada 3 segundos, mas acho que não estavam a falar de gente mas sim de fome.
Também falaram de 3 milhões num ano mas era de malária e cinco mil e tal por dia, mas era de SIDA e toda a gente sabe que, com os retrovirais, a Sida já não mata ninguém.
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Como é que podiam ser números de gente? Se fosse assim já não havia gente no mundo, não era? Devem ser esses maluquinhos das estatísticas... e toda a gente sabe que o cérebro humano não consegue perceber números tão grandes assim.
...e depois é sempre em sítios tão esquisitos que eu acho que é tudo invenção desses jornalistas e gente que quer apanhar o nosso rico dinheirinho, que já é tão pouco!
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Nota:
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Sinta-se livre para comentar, faça o seu próprio artigo de fundo e envie como comentário ou para o meu e-mail para ser aqui publicado nesta página que é sua.
Se quiser saber mais, veja aqui, aqui e aqui.
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Luís Pontes

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