terça-feira, 16 de outubro de 2012

Falar e linguajar


             Não gosto do Acordo Ortográfico e recuso-me a escrever segundo os seus ditames, mas, ao contrário de muitos, não acho que o acordo venha destruir a língua portuguesa ou sequer a falada em Portugal.
Ao Acordo ortográfico acho-o apenas triste, vendido, pindérico, causa-me principalmente vergonha, mas no linguajar do dia-a-dia perfilam-se ameaças bem mais graves, essas sem acordo, sem nexo, sem vergonha, uma catadupa de neologismos que se ouvem e empregam a torto e a direito, que até parecem português mas que são simplesmente ignorância vestida de modernidade de subúrbio, a mais terrível das culturas, aquela feita a partir das telenovelas, das casas de segredos e dos Paulos Coelhos deste mundo.

Quando Mia Couto, na sua imensa genialidade, cria palavras lindas como “abensonhados”, nós sabemos que não se trata de uma nova palavra do Português, mas tão-só mais uma abensonhada maravilha da magia de Couto com as palavras e só a empregaremos em citação, como eu estou a fazer agora.
As outras são bem mais sinistras e entram por todas as vias, à descarada, fazendo-nos vivenciar, sem o sabermos, esta investida constante do português troglodita.

Tenha-se o leitor apercebido ou não da aparição de um desses monstros no parágrafo anterior (de que, desde já me penitencio), é assim que governantes, professores, dirigentes, jornalistas, vivenciam a aplaudida chegada do tenebroso “vivenciar”, algo que ninguém sabe em que difere de viver, mas que se vai achando que é mais fino, mais “in”, e como é gente sempre mais preocupada com os seus preciosos segundos de fama televisiva, e todos os segundos desta vida são para experienciar em pleno, que também não se sabe em que difere de experimentar; explicava-me alguém há dias, que experienciar é “mais íntimo, intenso e místico” e que experimentar “tem mais a ver com experiências de laboratório…”(sic).

Tenha-se mas é juízo!

Este linguajar não consta dos dicionários de Português e suponho oriundo dos textos telenovelísticos ou de revistas-do-coração, transposto para a língua por suaves criaturas em processo de descoberta do seu Eu Espiritual pela mão de um qualquer guru e que tendo tido pouco tempo para essas questões menores e complicadas da língua, deduzem que se trabalham na recepção, então não recebem, recepcionam; se está na área de gerência, então não gere, gerencia; se lhe pedem para fazer uma intervenção, não intervém, intervenciona; enfim, se queremos estar na crista da onda in, então nada de perceber, como dizem os parolos e toca a percepcionar!
Claro que não me admirarei se algum dos meus leitores me vier dizer que o Priberan ou outro dicionário de vanguarda já incluem as novéis asneiras; há dicionaristas que vivem em estado de alerta para registarem qualquer ai que um falante solte numa entoação algo diferente, numa espécie de jogo Guinness de quem consegue mais entradas e perdendo o contacto com a sua função reguladora e educativa, ou não tivesse sido o afamado Priberam quem registou para o léxico essa enormidade da palavra “mídia”, ou seja, uma palavra latina (media) , lida pelos americanos “à americana” e copiada “de ouvido” para a escrita pelos brasileiros, hoje muito usada por muito professor-doutor, que nos tempos que correm também parecem multiplicar-se como dantes os bacharéis.

2 comentários:

João Saturnino disse...

Parabéns por este artigo que, além do mais, permitiu-me conhecer o seu blogue.
Infelizmente, o abastardamento da nossa Língua não é de agora. Quando nasci reinava a moda dos galicismos e de tudo o que era francês. Até os bebés vinham de Paris!
Pondo de parte a chamada falsa modéstia, convido-a visitar o meu blogue "O Suplício do Disparate". Pêlo menos sobre este tema, estaremos de acordo.
Cumprimentos,
João Saturnino.

Gloria de Sá disse...

Benzòdeus, Luis Pontes!
Encontrei o seu blog por acaso ao procurar na Internet a receita do arroz de favas do Eça depois de acabar de reler A Cidade e as Serras. Vivo fora de Portugal há cinquenta anos; mais precisamente nos EUA. Durante estas cinco décadas, devido ao meu trabalho e ao facto de ter casado com um americano, raramente falei Português. Perdi, sem dúvida, a facilidade do diálogo, mas sempre me esforcei por evitar anglicismos tanto em palavras como em construções gramaticais e quando me faltavam as palavras para exprimir algo sempre me senti envergonhada. Ultimamente, com a Internet, tenho mais acesso aos meios de comunicação sociais de língua portuguesa, o que me deu a oportunidade de me inteirar da violência de que estar a ser alvo o Português. Como o senhor, não sou contra a evolução da língua,mas sou contra o cortar-se-lhe as raízes, contra o deformá-la e degradá-la, reduzindo-a ao linguajar dos que não a conhecem. É com imensa tristeza que vejo portugueses a adoptarem padrões brasileiros, originários de camadas sociais evidentemente de baixa instrução. É revoltante ver a mediocridade ser louvada e aprovada. É frustrante quando se lê um texto, ostensivamente escrito em português, e não se consegue compreendê-lo. Enfim, tudo isto para dizer que me fez bem saber que há alguém que acha que viver e experimentar, é preferível a vivenciar e experienciar. Imagine o que diria o Eça se alguém lhe perguntasse se tinha vivenciado a vida da serra e experienciado um prato de arroz de favas!... Obrigada.